Metadados Convida14 de agosto de 2025

Jornada não-linear: um novo jeito de desenvolver pessoas

Em entrevista ao Metadados Convida, Daniela Pio explica as mudanças no desenvolvimento de carreira nas organizações

Jornada não-linear: um novo jeito de desenvolver pessoas

Durante muito tempo, o desenvolvimento de carreira foi compreendido como uma trajetória previsível e ascendente — quase como subir uma escada, degrau por degrau, em direção a um cargo mais alto. Hoje, em um cenário em constante transformação, impulsionado por novas tecnologias, mudanças sociais e exigências de mercado cada vez mais dinâmicas, será que essa lógica ainda faz sentido?

É a partir dessa provocação que começamos a explorar o conceito de jornada não linear de desenvolvimento — um modelo mais flexível, fluido e adaptável, em que o crescimento profissional não segue necessariamente um caminho reto e tradicional. Nesse novo paradigma, aprender continuamente, se reinventar e combinar diferentes experiências torna-se tão ou mais importante do que seguir uma trilha predeterminada.

Para nos ajudar a entender melhor esse tema e refletir sobre os impactos nas organizações, nas lideranças e nos próprios profissionais, conversamos com Daniela Pio, que vai estar no CONARH 2025 abordando esse assunto. Psicóloga, professora universitária e especialista em desenvolvimento humano, Daniela tem mais de 20 anos de experiência em grandes empresas e é fundadora da Ayo Inclusão e Equidade. Confira a entrevista!

Metadados: Jornada não linear de desenvolvimento é um tema que está na boca do povo?

Daniela Pio: Eu acho que ainda não está na boca do povo, ainda não é um termo que está popularizado, principalmente porque nós ainda estamos em um processo de entender o que é essa nova jornada de desenvolvimento que o mundo está nos exigindo. A realidade é que a gente está vivendo hoje em uma sociedade, não é só o mundo corporativo, que tem exigido que a gente se reinvente o tempo todo.

Um estudo divulgado no Fórum Econômico Mundial em janeiro deste ano aponta que até 2027, 44% das habilidades que a gente utiliza hoje no trabalho vão se tornar obsoletas. Então, coisas que a gente está usando hoje daqui a dois anos, talvez menos ou um pouquinho mais do que isso, vão se tornar obsoletas. A gente vai ter que aprender outras coisas, senão a gente não vai dar conta de trabalhar e atender as novas necessidades que o mercado exige.

Não tem mais como a gente pensar numa jornada de desenvolvimento que seja linear, porque a demanda vai mudando o tempo todo. Esse é o novo modelo mental que a gente precisa entender para repensar como a gente continua se educando, se desenvolvendo e buscando conhecimentos daqui para frente.

Metadados: O que que diferencia uma jornada tradicional de carreira de uma jornada não linear?

Daniela: Numa jornada tradicional, a gente pensava assim: eu preciso fazer uma graduação na área tal para eu poder trabalhar nesta área. Eu continuo acreditando que a formação acadêmica é muito importante, eu sou professora de ensino superior também. A graduação acadêmica vai ser importante, mas somente ela não será mais suficiente, principalmente por conta dessa volatilidade que o mercado está. Muita coisa que a gente aprende na graduação é estrutural, mas vai precisar complementar essa educação ao longo do tempo. Essa é a grande diferença.

Lá atrás a gente conseguia, por exemplo, fazer um curso e esse curso servir para o que a gente ia fazer por 10 anos. Hoje em dia já não é mais assim. Talvez esse curso sirva para o que eu tenho para fazer este ano. Para o ano que vem, eu vou precisar agregar novos cursos, novas formações para chegar no conhecimento, nas habilidades que eu preciso ter para atender as novas demandas, responsabilidades e pedidos que o mundo traz.

A grande diferença de antes para hoje é que a gente vai ter que programar mais coisas e entender que não é que não serve para nada o que a gente fez, mas que a gente vai precisar sempre complementar. É um pouco aquele sentimento que se a gente não cuidar pode até se tornar um sentimento de insuficiência e uma frustração, porque você fala: “nunca vai ser suficiente o que eu sei?”. É importante o que você sabe, mas é uma base e depois você vai ter que ir trazendo novos conhecimentos para essa base. Os ciclos de desenvolvimento e de aprendizagem e aplicação dessa aprendizagem estão mais curtos.

Metadados: Hoje, as transições são muito rápidas, as pessoas mudam muito rápido, as organizações também têm que se tornar mais fluídas e o RH tem um papel essencial nesse trabalho. Como fazer com que as organizações abracem essas jornadas não lineares e possibilitem que os seus colaboradores se desenvolvam numa jornada que não é aquela tradicional de carreira?

Daniela: Muito interessante a sua pergunta, porque também para mim tem sido um desafio. O jeito que eu aprendi a desenvolver, treinar pessoas lá atrás é diferente do jeito que hoje muitas vezes eu preciso aplicar. Então, por exemplo, nos clientes que eu trabalho eu tenho levado formas diferentes da gente construir conhecimento, da gente produzir aprendizado. Às vezes, o aprendizado não é, necessariamente, a gente sentando-se em sala de aula.

A gente, como profissional de RH, precisa pensar de maneira diferente. Nem sempre será necessário colocar todo mundo dentro de uma sala de aula para conseguir desenvolver pessoas. Às vezes, eu preciso pensar em pílulas curtinhas que as pessoas possam consumir todos os dias para adquirir um pouco de conhecimento.

Muitas vezes, a forma de eu produzir conhecimento é colocando as pessoas para trabalharem juntas dentro de um novo projeto. Pessoas diferentes, pessoas diversas que trazem perspectivas de mundos diferentes trabalhando juntas dentro de uma iniciativa específica.

É preciso entender que pessoas que têm estilos de aprendizagem diferentes. Tem gente que é mais autônomo no autodesenvolvimento. Tem pessoas que precisam de ações formais de desenvolvimento. Entender também os diferentes perfis que a gente tem dentro das organizações nos ajuda a encontrar as fórmulas mais adequadas para continuar desenvolvendo pessoas.

Metadados: Qual é o papel dos líderes nisso tudo? Como fazer com que eles abracem esse novo jeito de existir das organizações e façam com que os seus liderados avancem nas carreiras, embora não naquele formato mais tradicional?

Daniela: Todo mundo tem que estar atento às tendências do que está acontecendo e dos movimentos que ainda estão por vir. Mas o líder é a pessoa que tem que puxar, instigar as pessoas, as equipes a estarem conectadas com essa tendência. As lideranças que olham muito para o desenvolvimento de pessoas comumente dedicam tempo para conversar com suas equipes. Não é só cobrar as atividades do dia a dia, é dedicar tempo para conversar com as equipes, entender as necessidades individuais e necessidades coletivas, entender quais são as necessidades de recursos que uma equipe precisa para impulsionar a sua atuação, para inovar mais.

Então, o papel da liderança é fundamental para dar o movimento que a gente precisa. Entender que não é papel do indivíduo somente buscar esse desenvolvimento, que é papel da organização também dar recursos e criar esse movimento constante de desenvolvimento e de aprendizagem.

Metadados: Existem sinais nas organizações de que a equipe já está mais madura para ter esse tipo de desenvolvimento não linear ou que está até exigindo e desejando esse tipo de carreira?

Daniela: Sim, tem sinais. O principal sinal que eu vejo nas organizações que estão mais avançadas nesse tema são essas que estão se permitindo fazer diferente, que escutam, que têm um canal formal para que as pessoas tragam as suas necessidades de desenvolvimento. São aquelas empresas, por exemplo, que tratam o erro como parte do processo de aprendizagem. É muito nítido quando uma empresa tem um nível de maturidade diferente e mais avançado para essas tendências de desenvolvimento do que aquelas que se mantêm no tradicional, exigindo que a pessoa chegue na empresa com um monte de certificado, porque tem algumas que ainda querem na hora do processo seletivo.

Não que esses certificados não sejam importantes. Sim, eles são importantes, mas eles não definem o potencial dessa pessoa para atender as necessidades do negócio. Eles não definem o quanto que essa pessoa está flexível a aprender habilidades diferentes para poder se entregar cada vez melhor de acordo com o que os novos momentos, os novos movimentos de mercado estão pedindo.

Metadados: É possível notar mudanças também dentro da organização quando essa jornada não linear é abraçada?

Daniela: Com certeza, nos próprios resultados de negócio, na agilidade com que a empresa propõe soluções de problemas, na agilidade em que a empresa faz com que as pessoas se movimentem dentro da organização. As organizações que você vê as pessoas crescendo, ascendendo, assumindo novas responsabilidades são organizações que comumente já estão nesse modelo de desenvolvimento não linear.

Metadados: Existem novas gerações entrando ou assumindo mais papéis no mercado de trabalho e normalmente são gerações com perspectivas diferentes sobre como que deve ser o desenvolvimento de uma carreira, o que que eles esperam, o tempo que eles esperam para se desenvolver. Então, para as organizações também tem esse desafio de fazer a inclusão dessas novas gerações?

Daniela: Com certeza. E acho que esse momento que a gente está vivendo é crucial porque é a primeira vez que a gente tem praticamente cinco gerações convivendo juntas no mercado de trabalho. Nunca tivemos tantas gerações diferentes com perfis, comportamentos e estilos diferentes convivendo juntas no mercado de trabalho. O grande desafio é esse, porque a gente tem uma geração que acredita que quanto mais diplomas você tiver, mais pronto você está para o mercado de trabalho convivendo com uma geração que acredita que você não precisa de diploma nenhum, que tudo se aprende com ChatGPT.

O grande desafio é como se tira proveito do melhor de cada geração, porque cada geração tem aprendizados que podem contribuir para esse novo momento que a gente está vivendo. Então, a gente precisa aprender a congregar essas diferenças, escutar as contribuições de todas as gerações, para que isso possa contribuir para o caminho que a gente segue daqui para frente.

Metadados: Quais são ferramentas ou práticas que podem ser aplicadas pelo RH para promover a jornada não linear de desenvolvimento?

Daniela: Algo que eu gosto bastante e tenho promovido em algumas empresas nas quais eu trabalho são espaços de troca de conhecimento, rodas de conversa. Alguém apresentou uma solução, um projeto, uma iniciativa interessante que trouxe aprendizados para a organização? Pega essa pessoa para compartilhar os aprendizados daquela experiência. Ou até mesmo algo que não deu certo dentro da empresa, a gente reúne aquela equipe, reúne outras equipes que podem ter o mesmo problema, para entender juntos o porquê que deu errado. Isso é uma forma de desenvolvimento não-linear, porque eu estou compartilhando com outras pessoas aprendizados que aconteceram na prática. Esse é um exemplo bem disruptivo de como a gente pode promover desenvolvimento, novos conhecimentos, novas habilidades, e preparar melhor as pessoas para os desafios. Comumente, as pessoas não veem espaços como esse.

Outro exemplo é colocar pessoas de posições diferentes e até de níveis hierárquicos diferentes para falarem de um mesmo tema. Vou dar um exemplo de inteligência artificial. É um tema que se tornou um grande pano de fundo para tudo o que a gente faz e tem muito desconhecimento ainda. Então, eu posso colocar no mesmo webinar onde as pessoas da empresa são convidadas, o presidente falando da importância da inteligência artificial para a empresa, uma pessoa de compliance falando dos cuidados que precisa se ter com inteligência artificial e um técnico, um especialista ou um analista que é expert no tema para falar sobre a perspectiva técnica e ensinar as pessoas a operarem a inteligência artificial no dia a dia.

Assim, numa mesma sala de treinamento e desenvolvimento, você traz três perspectivas diferentes para ensinarem as pessoas como lidar com aquele tema que precisa ser trabalhado dentro da organização. Esse também é um outro exemplo interessante e disruptivo de criação de espaços de aprendizagem.

Metadados: Mesmo os profissionais sêniores devem experimentar esses movimentos não lineares? Como que se trabalha também o engajamento desse público?

Daniela: Talvez esses sejam os que mais precisam. Como eu comentei, tem estudo mostrando que até 2027, 44% das habilidades que a gente usa hoje vão se tornar obsoletas. É questão de sustentabilidade e manutenção das suas carreiras (para os sêniores). De você se manter empregável, se manter como alguém que tem o que contribuir para o mercado, independente do tempo de experiência que você tem. Não é só sobre crescimento de carreira, não.

Metadados: Hoje em dia, qualquer um está passível de se tornar obsoleto porque justamente tudo muda muito rápido. A gente perdeu aquela linearidade da vida que a gente imaginava ter, né?

Daniela: É, perdemos. A gente precisa mudar um pouquinho o modelo mental de olhar para isso como uma perda no sentido pejorativo. É mudança. A gente está vivendo uma nova era, um novo momento com coisas que são boas e com coisas que a gente ainda não entende direito. Talvez porque a gente não entenda direito, a gente encara ainda com alguma ressalva, com algum desconforto.

Conheça quem escreveu o artigo

  • Flavia Noal
    Flavia Noal

    Flavia é jornalista com 15 anos de experiência em reportagem, produção de programas de rádio e assessoria de imprensa. Atualmente, é produtora de conteúdo da Metadados com atuação voltada aos diversos assuntos da área de Recursos Humanos.

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